MPF de Janaúba obtém decisão que obriga Funai a incluir Terras Indígenas Xacriabá ainda não regularizadas em sistemas do Incra


Povo Indígena Xacriabá vive em municípios do Norte de Minas Gerais e teve mais de 50 mil hectares de seu território excluídos do Sigef e Sicar pela Instrução Normativa 9/2020, da Funai, que vem sendo amplamente contestada

O Ministério Público Federal (MPF) obteve decisão judicial que obriga a Fundação Nacional do Índio (Funai) a incluir as terras indígenas em processo de demarcação e regularização, situadas nos municípios que integram a Subseção Judiciária Federal de Janaúba, no norte de Minas Gerais, no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) e no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar) do Instituto Nacional de Reforma e Colonização Agrária (Incra). A mesma providência deverá ser tomada na emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites e nos procedimentos de análise de sobreposição, ambos sob responsabilidade da própria Funai. Foi dado prazo de cinco dias para cumprimento da decisão, sob pena de pagamento de multa diária no valor de R$ 10 mil.

Em 2020, a Funai editou a Instrução Normativa 09, que simplesmente desobrigou a averbação da existência de procedimentos demarcatórios em curso na matrícula de imóveis incidentes sobre terras indígenas. Com isso, ao excluir as terras indígenas dos sistemas, o Incra possibilitou a certificação de imóveis particulares em áreas não homologadas, criando riscos não apenas para os indígenas e para o meio ambiente, como para eventuais negócios jurídicos que envolvam tais bens.

Para o MPF, tal normativa constitui evidente retrocesso inconstitucional, porque, ao dispor que as terras tradicionalmente ocupadas por população indígena seriam apenas aquelas “homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas”, além de incentivar a grilagem de terras e conflitos fundiários, restringe indevidamente o direito dos indígenas às suas terras.

No caso específico da área territorial sob competência da Subseção Judiciária de Janaúba, estudo feito pela Câmara de Povos Tradicionais e Populações Indígenas do MPF (6CCR) sobre a situação das Terras Indígenas no Brasil, apontou que os indígenas da etnia Xakriabá, residentes no norte de Minas, tiveram seus territórios tradicionais indevidamente retirados e ocultados do Sigef. Essa usurpação seria de 53.066 hectares, correspondentes a terras em fase de regularização – Riacho/Luiza do Vale, nos municípios de Rio Pardo de Minas e Serranópolis de Minas - ou de revisão – Xakriabá, nos municípios de Itacarambi e São João das Missões. O risco é ainda maior quando analisados os dados inerentes ao Cadastro Ambiental Rural (CAR), declarados no Sicar, com a incidência de diversas propriedades ou posses rurais privadas sobre terras indígenas.

Inconstitucional - Também para o Juízo Federal, “a Instrução Normativa/Funai 09/2020 não se coaduna com o regramento jurídico que resguarda interesses amplos em relação às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas”, sendo possível entrever seus “vícios de inconstitucionalidade, de inconvencionalidade e de ilegalidade”.

Lembrando que a Constituição de 1988 dispôs que as terras indígenas “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (§ 4º), com expressa previsão da invalidade absoluta dos atos tendentes a suprimir os direitos reconhecidos em prol das comunidades indígenas sobres as terras que tradicionalmente ocupam”, o magistrado afirma que a IN 09/2020 “fixa proteção jurídica muito inferior à proteção conferida pela Constituição Federal, pela Convenção 169 da OIT e pela Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, na medida em que prevê que apenas os limites de terras indígenas homologadas, reservas indígenas e terras dominiais indígenas plenamente regularizadas serão respeitados na Declaração de Reconhecimento”.

Segundo a decisão judicial, “permitir que terras indígenas com processos de demarcação ainda não finalizados sejam desconsideradas nos registros do Sigef e do Sicar, (…) decerto acaba por violar os direitos originários dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas por eles, bem como o caráter declaratório da demarcação. Nessa linha, a Instrução Normativa/Funai 09/2020 contraria normas de estatura hierárquica superior a respeito da matéria, sobretudo o art. 231, § 6º, da Constituição Federal, ao possibilitar a precedência e a sobreposição de títulos privados em territórios indígenas, o que pode trazer ainda mais embaraços à tramitação dos processos demarcatórios que já perduram há anos, além de repercutir em negócios jurídicos celebrados sob a falsa expectativa de transmissão da propriedade”.

Riscos e prejuízos - O Juízo Federal adverte para os graves prejuízos que podem advir da Instrução Normativa/Funai 9/2020 não somente em relação aos legítimos interesses das populações indígenas locais, como a “particulares de boa-fé que eventualmente firmem títulos privados, criando-se uma falsa expectativa sobre a legitimidade da ocupação e da propriedade em razão da possibilidade de registro no Sigep e no Sicar”, e também ao erário, pois “com a finalização de um processo de demarcação de terra indígena, a aparente propriedade deverá ser afastada, situação que, inevitavelmente, ensejará inúmeras ações indenizatórias em face da União”.

Ele ainda destaca que, “nesse particular, sobreleva fazer breve menção ao ambiente de graves conflitos que vigora na região onde se localizam as terras indígenas Xakriabá e Xakriabá Rancharia, (...) para que se tenha uma real noção da gravidade do quadro que assola a região, decorrente, sobretudo, da demora do Estado em fornecer uma resposta efetiva no que toca ao procedimento de demarcação, que se arrasta por anos”.

Íntegra da decisão

(ACP nº 1002395-16.2021.4.01.3825)

Saiba mais - Em 2014, o MPF ingressou com uma ação civil pública (ACP 0001854-98.2014.4.01.3807) contra a Funai, para o cumprimento dos atos referentes à revisão dos limites da Terra Indígena Xacriabá, nos prazos estipulados pelo Decreto 1775/1996, especialmente com relação à aprovação e publicação do respectivo Relatório Circunstanciado de Identificação e Revisão (RCIR). A inação do órgão indígena levou à deflagração de diversos conflitos entre fazendeiros e indígenas em 2007, 2008 e 2013, culminando em um incêndio criminoso na Terra Indígena Xacriabá, no município de São João das Missões (MG), na madrugada de 24 de junho deste ano, em um cenário de violência agravado pela insegurança jurídica ocasionada pela Instrução Normativa/Funai 9/2020.

A ação de 2014 encontra-se em grau de recurso no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) desde novembro de 2018.

Em razão do incêndio ocorrido em junho deste ano, o MPF ingressou com outra ação civil pública (ACP 1001999-39.2021.4.01.3825), para que a Funai e a União adotassem, em 48 horas, medidas concretas de fiscalização e de proteção em defesa da Terra Indígena Xakriabá, inclusive nas áreas ainda não demarcadas; fornecessem à comunidade indígena, em cinco dias, dois computadores semelhantes aos perdidos no incêndio; e iniciassem e concluíssem, em até três meses, a reconstrução dos imóveis destruídos no incêndio [Escola Xukurank e Casa de Medicina].

A liminar foi concedida pela Justiça Federal no último dia 15 de julho, deferindo todos os pedidos feitos pelo MPF.


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