BRASIL PRÉ-HISTÓRICO: O HOMEM DE BURITIZEIRO


Quem foram os primeiros seres humanos a povoar o território onde hoje se delimita o Brasil? Luzia, a jovem mulher que viveu há 10,5 mil anos na região de Lagoa Santa (MG), tinha feições negróides e era, provavelmente, descendente da primeira migração da Ásia. Em algum momento da pré-história, no entanto, essa população foi substituída por outra, cujos traços mongolóides ainda caracterizam os modernos povos indígenas brasileiros. A forma como tal mudança ocorreu, possivelmente entre seis e oito mil anos a.C., permanece uma incógnita. No entanto, o sitio arqueológico de Buritizeiro, localizado no norte de Minas Gerais, pode ajudar a esclarecer essa questão.
Situado na Zona do Alto Médio São Francisco, o “Cemitério Caixa dÁgua” foi descoberto em 1987, no Centro de Buritizeiro, quando teve início uma obra de saneamento ao lado da Prefeitura da cidade. Operários que trabalhavam na abertura de valas para instalação de uma rede de esgoto se depararam com ossadas humanas e comunicaram o fato ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) confirmou a importância histórica do sítio arqueológico, que foi então isolado e mantido protegido pela Prefeitura.
Em uma iniciativa da Missão Arqueológica Francesa de Minas Gerais, da qual participa o Setor de Arqueologia da UFMG, foram realizadas três campanhas de escavações – em 2005, 2006 e 2007 –, contemplando uma área de 30 m2. Além das ossadas, foram encontrados materiais líticos – rochas lascadas ou polidas para confecção de artefatos, como pontas de setas, facas, machados e batedores –, ossos de animais, restos alimentares e objetos utilizados em rituais funerários. Essas evidências servirão como base para investigação nas áreas de antropologia, arqueologia, geologia, geoquímica ambiental e geomorfologia.
Coordenado pelo arqueólogo André Prous – que também participou das escavações nas quais foi encontrado o crânio de Luzia, em Lagoa Santa –, o trabalho conta com a colaboração de diversas instituições nacionais e internacionais. Financiados pela FAPEMIG e pelo Ministério Francês das Affaires Etrangères, os estudos também receberam apoio da Prefeitura Municipal de Buritizeiro e da Fundação Caio Martins.

Quebra-cabeça
Especialistas em Bioantropologia da Universidade de São Paulo (USP) são responsáveis pelo estudo dos esqueletos humanos retirados do “Cemitério Caixa dÁgua”. Instrumentos e plantas foram levados para o Museu de História Natural da UFMG para identificação das técnicas de fabricação, formas de utilização e transformações tecnológicas ocorridas ao longo do tempo. Amostras de sedimento foram enviadas para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde análises de grãos de pólen antigos fornecerão informações sobre a vegetação do passado.
A Universidade de Exeter, na Inglaterra, fará o estudo dos fitólitos, elementos siliciosos formados por determinadas famílias ou gêneros de plantas. Os fitólitos geralmente possuem morfologias muito específicas, permitindo a identificação das plantas que os produziram e que, provavelmente, eram consumidas por essa população. Restos de carvão foram datados nos Estados Unidos e a análise química dos sedimentos foi realizada na Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Aos laboratórios de Geologia e Geomorfologia instalados no Campus Pirapora, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), foi atribuída a tarefa de analisar as rochas, seixos – fragmento mineral menor do que bloco e maior do que grânulo – e solos do sítio arqueológico. A equipe da Unimontes fará ainda a reconstituição paleogeográfica da superfície do terreno em um projeto tridimensional (3D), com a utilização de softwares específicos. Reunidos, os resultados de todos esses estudos permitirão a reconstrução do cenário habitado pelo “homem de Buritizeiro”.

Relevância do achado
Em 2004, a datação de um dos ossos humanos coletados em 1983 apontou a idade aproximada de seis mil anos. Abaixo dos sepultamentos, encontram-se camadas arqueológicas mais profundas com vestígios de, pelo menos, três momentos de presença humana. Estudos posteriores forneceram outras datações, indicando um período de ocupação entre 5,5 mil e 10,5 mil anos atrás.
André Prous explica que a importância histórica do cemitério reside justamente em sua faixa cronológica. “Existem no Brasil poucas ocorrências desta época, sobretudo fora dos abrigos naturais. Trata-se do período durante o qual houve a substituição dos grupos pioneiros, aquele homem dito "de Lagoa Santa", pelas populações indígenas de tipo moderno, ou mongolóides. O estudo de um cemitério dessa época interessa particularmente aos bioantropólogos”, ressalta Prous.
A existência ou não de articulação entre os povos da planície e das zonas altas, assim como a forma de ocupação são outras questões que os pesquisadores buscam compreender. Teria o “homem de Buritizeiro” mais relações com as populações que moravam ao longo do São Francisco ou com as dos platôs e da Serra do Espinhaço?
Para o professor Hernando Baggio, do Departamento de Geociências da Unimontes, o “Cemitério Caixa dÁgua” tem uma importância maior em relação a outras descobertas no Estado por se tratar de um dos sítios arqueológicos a céu aberto mais bem conservados ao longo do Vale do São Francisco. “O sítio reúne evidências que favorecem o estudo das rotas utilizadas pelos homens pré-históricos no povoamento da região. A partir de estudos geológicos e geomorfológicos, pretendemos também identificar as principais fontes de matéria-prima utilizadas para a produção de artefatos líticos e, assim, compreender de onde esses homens retiravam seu material e qual a abrangência da área percorrida por eles”, afirma Baggio. Muitas dessas rochas eram trazidas de locais situados a dezenas de quilômetros de Buritizeiro.
“Estudos complementares em outros sítios arqueológicos da região, como os trabalhos de campo que devem ser iniciados no município de Jequitaí, mostram-se fundamentais para a contextualização do sítio arqueológico de Buritizeiro”, enfatiza André Prous. O professor conta que, pouco antes do fim do projeto, em julho de 2007, vários outros sepultamentos foram encontrados no cemitério. “Fomos obrigados a enterrar novamente os esqueletos para protegê-los.  A área está resguardada, mas o "Cemitério Caixa dÁgua" demanda urgentemente um projeto de longa duração que garanta a exploração de todo o seu potencial”, alerta. Várias partes do sítio foram perturbadas pelas obras de saneamento iniciadas no local. A terra foi revolvida e alguns esqueletos foram estraçalhados pelo peso das máquinas.
Embora os estudos de laboratório estejam apenas em fase inicial, o sítio de Buritizeiro já foi mencionado no livro sobre arqueologia “O Brasil antes dos brasileiros”, lançado em 2006, pela editora Zahar.

Pescadores do Velho Chico
O estudo dos ossos deve indicar as características morfológicas, o sexo e a idade de cada indivíduo, assim como eventuais marcas de doença visíveis. Análises químicas de esqueletos e dentes ajudarão a conhecer a alimentação desses grupos, enquanto os raios X serão capazes de demonstrar se tiveram doenças graves durante o período de crescimento. Associados a análises geoquímicas, os resultados podem revelar informações sobre carências alimentares, hábitos, costumes, descarte de lixo doméstico e necessidades fisiológicas, entre outras informações. Traços de carvão, por exemplo, indicam vestígio de fogo e apresentam sinais de que a ocupação naquela área pode chegar a 8 mil anos.
Acredita-se que o “homem de Buritizeiro” era pescador, que se beneficiou da abundância de peixes ainda hoje encontrada nos rios da região. É provável que a fartura de frutas também tenha tido importante papel em seu regime alimentar. O buriti, palmeira característica das veredas do sertão, pode ter sido utilizado com alimento e matéria-prima para vestuário, habitação e artesanato.
Entre os instrumentos de pedra abandonados, encontram-se lascas cortantes de arenito silicificado usadas como facas, provavelmente para preparar os peixes; instrumentos mais robustos para trabalhar a madeira; pontas de flecha em sílex, rocha sedimentar ausente nas imediações do sítio; e machados de pedra polida, feitos com material de origem ainda mais distante.
Junto às ossadas, os pesquisadores encontraram rochas lascadas ou polidas, ossos de animais, restos alimentares e outros objetos.


Pablo de Melo
pablo-labs@hotmail.com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Na zona rural de Curvelo casal é encontrado morto; suspeita é de que o homem assassinou a mulher e se matou

Janaúba: batida entre caminhões na MGC-401 deixa três mortos

Em Brasília de Minas, jovem é preso após atear fogo na casa da mãe