As cidades sem plano de trabalho
No mapa acima, quanto mais alaranjado o município, mais dinheiro de emendas sem plano de trabalho ele recebeu. Em cinza, as cidades sem pendência junto ao Transferegov
(Alessandra Mello e Gabriel Ronan, EM) O destino de R$ 116,4 milhões em emendas Pix enviadas por deputados e senadores para Minas Gerais, entre 2020 e 2024, é desconhecido pela população e pelos órgãos de controle. Desde que essa modalidade de transferência especial, aprovada pelo Congresso Nacional em 2019 e implantada a partir de 2020, entrou em vigor, 121 municípios mineiros ainda não prestaram contas da aplicação desses valores, ou seja, quase 15% do total de cidades do estado.
Essas emendas foram criadas pelo Congresso Nacional em 2019 e batizadas de Pix devido à facilidade com que o dinheiro caía na conta das prefeituras, sem necessidade de comprovação prévia sobre como os recursos serão gastos, como ocorre com as outras modalidades de emendas. Desde 2014, a prestação de contas passou a ser obrigatória.
Ao todo, são 407 emendas recebidas por essas cidades, com assinatura de 51 parlamentares, entre deputados e senadores, sem que haja detalhamento de como os recursos públicos foram gastos. O levantamento foi feito pelo Núcleo de Dados do Estado de Minas no portal TransfereGov, do governo federal, uma plataforma digital que centraliza informações sobre transferências de recursos da União para estados, municípios, órgãos e entidades da administração pública.
A cidade campeã em valores de emendas Pix sem prestação de contas, até a publicação desta reportagem, é Viçosa, na Zona da Mata, governada até o ano passado por Raimundo Violeira (PSD). Com cerca de 77 mil habitantes, o município recebeu R$ 7,9 milhões em emendas cuja aplicação é desconhecida.
Na sequência, ainda em volume de recursos, aparecem Itapagipe (R$ 4,4 milhões), Ubaporanga (R$ 3,7 milhões), São João do Paraíso (R$ 3,4 milhões) e Simonésia (R$ 3,3 milhões), todas de pequeno e médio porte. As prefeituras foram procuradas pela reportagem, mas não se pronunciaram sobre a ausência de prestação de contas.
Em número de transferências sem detalhamento, independentemente do valor monetário, a campeã é Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, que ainda não explicou como gastou 14 emendas recebidas durante a gestão do ex-prefeito Daniel Sucupira (PT), que comandou o município entre 2021 e 2024.
Viçosa aparece novamente na lista com 11 repasses recebidos de Brasília sem detalhamento sobre a destinação. A cidade está empatada com Arinos, na Região Noroeste, que também não prestou conta de 11 emendas. Em seguida, estão Varzelândia e Nanuque, ambas no Norte de Minas Gerais, cada uma com uma dezena dessas transferências especiais ainda não detalhadas.
A Prefeitura de Varzelândia informou que, por ser nova gestão, enfrenta dificuldades para prestar conta desses recursos, pois não há documentação disponível. Nem mesmo pelos extratos bancários do município há como saber o destino dessas emendas, segundo a administração.
O Executivo municipal, hoje sob o comando de Amâncio Oliva (PSB), estuda abrir processo administrativo e convocar gestores da administração da ex-prefeita Valquíria Cardoso (MDB), que governou o município entre 2017 e 2024, para tentar descobrir o destino dessas verbas. Caso contrário, o município poderá ser penalizado com a suspensão do repasse de novas emendas. A ex-prefeita não foi localizada pela reportagem.
A Prefeitura de Teófilo Otoni esclareceu que está reunindo a documentação de despesa para atender a demanda de informações e destacou que recebeu um ofício concedendo 90 dias para prestar os detalhes sobre o destino do dinheiro. “Assim, estamos dentro do prazo”, afirmou. Em nota, o ex-prefeito Daniel Sucupira afirmou que a prestação de contas dessas emendas passou a ser exigida pelo Tribunal de Contas da União (TCU) somente em janeiro de 2024, mas que não foi possível atender essa determinação. “Porque ainda não haviam sido executados integralmente todos os recursos recebidos nos exercícios anteriores, não permitindo a elaboração da prestação de contas final”.
De acordo com a nota, desde então sua administração adotou todas as providências necessárias “para assegurar o fiel cumprimento das exigências legais e regulamentares”. O ex-prefeito disse ainda que a necessidade de prestações de contas foi comunicada à gestão que o sucedeu, reforçando seu compromisso “com a transparência, a correta aplicação dos recursos públicos e o pleno atendimento às determinações dos órgãos de controle”. Procuradas também, as prefeituras de Nanuque e Arinos não se manifestaram.
Prazo
Os municípios têm até o começo de julho para detalhar a aplicação dessas emendas ao governo federal. A determinação é do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 1º de abril, concedeu prazo de 90 dias para que os planos de trabalho sejam apresentados. No total, à época, 6.247 emendas ainda não contavam com a informação na plataforma de transferências de recursos federais, conforme levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU). Elas foram enviadas para cidades de todo o Brasil, mas seguem sem prestação de como foram gastas.
Desde o ano passado, a partir de ações questionando a falta de transparência na destinação desses recursos, o TCU e o STF adotaram medidas para garantir a rastreabilidade das emendas Pix, sobretudo após decisões do ministro Flávio Dino. Uma delas foi proibir, a partir do orçamento de 2025, a transferência diretamente para as contas dos estados e municípios sem formalização prévia de convênio, apresentação de projetos ou aval técnico, como era feito até o ano passado.
A corte determinou também que todas as cidades já beneficiadas com as emendas Pix devem prestar contas aos respectivos ministérios, de maneira individualizada, sobre o uso de cada uma, sob pena de bloqueio de repasses futuros e abertura de inquéritos.
Emendas pix cresceram 12 vezes entre 2020 e 2024
Desde que entrou em vigor, o volume de emendas Pix vem crescendo. De 2020 até o ano passado, a distribuição de recursos pelos parlamentares por essa modalidade cresceu 12 vezes, de acordo com a ONG Transparência Brasil (TB).
O Núcleo de Dados do Estado de Minas levantou quem são os maiores remetentes de emendas Pix sem prestação de contas, tanto em termos de volume de recursos como de valores. Dos R$ 116,4 milhões em recursos sem detalhamento da aplicação, R$ 6,5 milhões foram indicados pelo ex-deputado federal Léo Motta (Republicanos), que exerceu somente um mandato. Ele é seguido por Fred Costa (PRD), com R$ 5,4 milhões; Misael Varella (PSD), com R$ 5,2 milhões; Aelton Freitas (PL), que foi deputado entre 2008 e 2023, com R$ 4,4 milhões; e Rodrigo de Castro (União Brasil), com R$ 4,3 milhões.
Em termos de quantidade, 24 das 407 emendas Pix sem prestação de contas são do deputado federal Padre João (PT). Na sequência, aparece novamente o deputado federal Fred Costa, com 23 emendas sem destinação clara. O senador Carlos Viana (Podemos) vem em terceiro com 18. O deputado Mário Heringer (PDT) e ainda o ex-deputado federal Vilson da Fetaemg (PSB), que exerceu um só mandato no período de 2019 a 2023, estão empatados com 15 cada transferências cada.
Heringer esclareceu o destino de três das suas 15 emendas sem plano de trabalho. Uma para Araxá (Alto Paranaíba), no valor de R$ 205 mil, foi usada na castração de cães e gatos. Outra de R$ 239 mil foi para São João do Paraíso (Sul de Minas) com intuito de realizar pavimentação de estradas vicinais. Já uma terceira de R$ 100 mil para Santo Antônio do Jacinto se destinou ao "melhoramento da estrada e pontes do distrito de Cristianópolis”. Quanto às demais, o deputado informou que “a emenda constitucional, até então em vigor, não exigia projeto, nem prestação de contas (até 2024)”.
Vilson da Fetaemg enviou nota na qual informou que “as indicações ocorreram em estrita conformidade com a Constituição Federal”, sendo pautadas pela “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, sempre com foco no interesse público”. O parlamentar disse, ainda, que tem “compromisso com a transparência e a rastreabilidade dos recursos públicos”.
O ex-deputado Aelton Freitas informou que “essas emendas não contavam com esse regramento atual determinado pelo STF”, quando ele exercia o mandato. “O parlamentar designava um valor xis para o município xis, e esse município o aplicava de forma livre, exceto custeio de folha de pagamento. Entre as nossas transferências sem plano de trabalho, a gente sabe que Itapagipe, por exemplo, comprou equipamentos para centro de saúde e materiais para infraestrutura. Em Iturama, se comprou uma ambulância”, afirmou o parlamentar. “Todas as nossas emendas encaminhadas tiveram acompanhamento. A gente buscava o retorno das prefeituras, até para divulgação do trabalho parlamentar”, completou Aelton.
O senador Carlos Viana informou que se trata de “nova exigência do STF”. “Os municípios, especialmente os menores, estão com dificuldade em preencher o plano de trabalho por vários motivos, entre eles mudança de gestão. O gabinete está auxiliando esses municípios para que se adequem às novas regras. Inclusive, para este ano de 2025, o autor da emenda, no ato de indicação, já deve fazer alguns detalhamentos e o município já deve apresentar o plano de trabalho", afirmou.
Entre 2020 e 2024, a distribuição de emendas Pix pelos parlamentares, segundo levantamento da ONG Transparência Brasil (TB), passou de R$ 620 milhões para R$ 7,7 bilhões. Para Marina Iemini Atoji, diretora da TB, a clareza sobre a aplicação dessas emendas é “fundamental para que a sociedade saiba o que está sendo feito com os mais de R$ 7 bilhões em recursos públicos federais, e assim possa verificar se os gastos de fato têm como prioridade o interesse público, e não apenas o interesse eleitoral”.
Além de como esses recursos foram gastos, a transparência sobre sua aplicação possibilita uma análise sobre o impacto desses gastos na solução de problemas crônicos ou estruturais.
Até agosto do ano passado, a aplicação das emendas Pix era falha, argumenta Atoji, pois ficava a cargo somente dos estados e municípios que recebiam os recursos. “Era preciso, portanto, olhar os portais de transparência de cada beneficiário, que nem sempre são completos, para saber o que era feito”.
Atualmente, os gestores precisam incluir esses dados em uma plataforma, o TransfereGov, da qual a reportagem retirou os dados sobre as prestações de contas não apresentadas. No entanto, documentos como notas fiscais e contratos não estão disponíveis para visualização. “Como há falhas na transparência, a margem para fraudes e ineficiência é grande”, afirma Atoji, cuja entidade vem cobrando do STF acesso também às notas e documentos sobre a aplicação das emendas Pix .
Em manifestação enviada ao STF, a entidade voltou a alertar a corte sobre o impedimento de acesso a documentos relativos à execução de emendas. Essa consulta está restrita há um ano. O Ministério da Gestão e Inovação (MGI) deixou de disponibilizar o download de diversos documentos na plataforma desde maio passado, sob a justificativa de adequação à Lei Geral de Proteção de Dados. Não é possível, por exemplo, visualizar ou baixar as notas fiscais, notas de empenho ou contratos referentes às emendas pix. Para a TB, a decisão do ministério prejudica o interesse público em nome da proteção de direito individual.
O que são emendas?
As emendas individuais são um dos principais trunfos dos parlamentares, principalmente a partir de 2015, quando, por meio de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) aprovada pelo Congresso Nacional, a execução passou a ser obrigatória por parte do governo federal – desde que não existam impedimentos judiciais ou administrativos para o repasse. No Orçamento da União deste ano, os parlamentares terão R$ 50,4 bilhões para distribuir entre emendas individuais, de bancada e de comissão. Cada deputado tem direito a R$ 37 milhões, e cada senador a R$ 68,3 milhões, totalizando R$ 24,6 bilhões para as duas casas legislativas. Metade desse valor deve ser aplicado em saúde. O restante dos recursos é dividido entre emendas de bancada e de comissão, sendo que as últimas não são de liberação obrigatória.
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