Trabalhadores de Porteirinha: 'Mesmo com braço deslocado tive que trabalhar', conta um dos resgatados em situação análoga à escravidão em Paracatu

 Trabalhadores rurais que foram resgatados em situação análoga à escravidão em Paracatu — Foto: Grupo de Combate ao Trabalho Escravo em Minas Gerais/ Divulgação

(Por Lucas Figueira, G1) Péssima alimentação, trabalho desgastante, sem suporte médico, moradia inadequada e até ter que trabalhar com um braço deslocado.

Esses foram alguns dos problemas vividos por mais de 80 trabalhadores que foram resgatados no mês de junho deste ano de 2021, durante fiscalização das equipes do Ministério Público do Trabalho (MPT) em situação análoga à escravidão em Paracatu, no Noroeste de Minas Gerais.


As vítimas eram principalmente de Porteirinha, no Norte de Minas e do Estado do Maranhão e foram localizadas no Condomínio de Empregadores Rurais Santa Maria.


Um dos responsáveis pelo local é Márcio Areda Vasconcelos, que tem o nome na “Lista Suja do Trabalho Escravo” por outro incidente anterior. Os trabalhadores que estavam no local trabalhavam em uma lavoura de milho.


O G1 conversou com duas pessoas que viveram nessa realidade e contaram sobre os problemas vividos durante o período. Nenhum dos dois trabalhadores se sentiram à vontade para ter as identidades reveladas.


Primeiros problemas
Entre os trabalhadores está um jovem de 21 anos, que vive no interior do Maranhão. Ele conta que chegou até o local através de um “gato”, como são chamados os intermediadores ilegais de pessoas.


Ele foi levado até Paracatu, com a promessa de que trabalharia com carteira assinada e todos os direitos. Porém, na prática, não foi bem assim.

“Começamos a trabalhar sem ter exame, sem ser fichado. No primeiro dia a comida foi boa, depois foi piorando. O café da manhã era um pão, que a gente tinha que aguentar até 11h. A janta era uma comida velha, ruim, que teve até gente que passou mal”, lembrou o jovem.


No caso desse rapaz, ele não ficou hospedado dentro da fazenda, mas sim em uma residência na cidade. Mas mesmo lá, ele não tinha direito de sair da residência, sem a permissão do responsável, nem acessar alguns cômodos.

“A gente ficou como prisioneiros. Só uma pessoa lá responsável tinha a chave e a gente não podia sair nem na frente de casa. Eram quatro em cada quarto, mas não podia entrar na cozinha para fazer o café”, contou.


Fazenda
Um outro jovem, de 25 anos, ficou hospedado na fazenda. Diferente da cidade, ele lembra que era muito ruim para dormir e ficar no local, pelo fato de várias pessoas viverem em um pequeno espaço.

“Ficavam 40 peões dentro do alojamento. Não dava nem para se virar direito. Parecia até uma cadeia lá dentro. Não tinha coberta, só tinha alguns colchões que não prestavam, estavam rasgados, furados”, explicou.


Ele ainda diz que “as marmitas eram péssimas. De manhã tinha só um café com pão seco, nem manteiga tinha. A gente tinha que tomar o café dentro do busão (sic) as vezes”.

Os problemas contados pelos trabalhadores também foram flagrados por Marcelo Campos, o auditor do trabalho que esteve no local. “Tentaram impedir nosso acesso aos alojamentos. Quando conseguimos verificar, constatamos que os trabalhadores viviam lá. O local não tinha a mínima condição de higiene”.


“O Márcio Areda, na fiscalização passada [em 2019], alojava todos os trabalhadores na cidade, mas ele percebeu que isso chama muita atenção. A vizinhança via os trabalhadores circulando. Ele decidiu construir um alojamento na fazenda e colocou os trabalhadores lá”, completou o auditor.
 

Lesão no braço
Além dos problemas na alimentação, o jovem de 21 anos não esquece dos momentos de sofrimento durante o trabalho, por conta de uma lesão que teve no braço, enquanto trabalhava.

“Eu desloquei meu braço. Um dos fiscais da empresa viu que eu machuquei, ele mesmo puxou e colocou no lugar. Eu até chorei de dor na hora. Mesmo assim continuei trabalhando com uma mão só, pois falaram que iriam descontar do meu salário se não trabalhasse. Amarrei um pano no meu braço, no meu pescoço e continuei”, comentou.


O trabalhador alegou que deslocou o braço e que mesmo com o problema, não foi levado ao médico. Tendo que tomar um remédio para dores que ele mesmo tinha levado.


Alguns dias depois, durante uma fiscalização das equipes do Ministério Público do Trabalho (MPT) e Auditoria Fiscal do Trabalho, o jovem voltou a machucar o braço novamente e foi aconselhado por pessoas da fazenda a “se esconder” para que não fosse visto pelos fiscais.


Mesmo com a nova lesão, ele era obrigado a trabalhar. “Sempre ameaçavam mandar embora por justa causa se a gente recusasse a trabalhar. A gente tinha medo. Um deles que não quis ir trabalhar ficou um dia sem café e sem almoço, como um castigo”, lembrou o jovem.


Higiene
O auditor do trabalho ainda detalha que a primeira turma que esteve no local, vindo de Porteirinha, passou por um processo de infecção pela Covid-19.


“Cerca de 20 deles adoeceram, isso antes dos trabalhadores do Maranhão chegar. O fazendeiro pegou a turma que estava com sintomas e a colocou em outro alojamento”, detalhou.


Ele ainda completa lembrando que mesmo contaminados e com sintomas, eles continuaram trabalhando. “Mesmo com a Covid-19, eles não foram dispensados do trabalho, então criou uma turma de trabalho de pessoas com sintomas da doença. E mesmo com os sintomas tinham que ir trabalhar no milharal”.


Esquema do condomínio
O auto de infração da ocorrência mostrou detalhes de como funcionava o esquema que levou os trabalhadores até a situação vivida em Paracatu. Conforme consta no documento, tudo começava com a captação de trabalhadores em outras cidades, através dos intermediadores ilegais de pessoas.


Foram identificados 3 desses no esquema, responsáveis por trazer os trabalhadores até o condomínio de empregadores rurais Santa Maria. Nesse condomínio, o representante é Márcio Areda, que é reincidente nesse tipo de prática por outro fato similar flagrado em 2019.


“Trata-se de um condomínio de empregadores, que é uma união de diversos empregadores e proprietários rurais, que tem como objetivo a contratação de trabalhadores para trabalhas nas fazendas. Isso é permitido, mas seguindo as leis”, explicou o auditor fiscal Marcelo Campos.

Além de Márcio, outras 44 pessoas foram autuadas por conta do crime pois, de acordo com o documento: “entre os condôminos é firmado um pacto de solidariedade mútua em que todos os seus associados se responsabilizam solidariamente pela contratação dos trabalhadores. Entre os produtores membros do condomínio é eleito um "cabeça" do grupo. No entanto, todos os condôminos são solidariamente responsáveis pelas questões trabalhistas do condomínio”.


Força de vontade
A condição desfavorável incomodava aos trabalhadores, porém, mesmo com tudo isso, eles ainda se mantinham trabalhando, principalmente pelo medo de não receberem o equivalente ao que foi trabalhado antes.


“O que me motivou foi porque eu precisava trabalhar. A pessoa que precisa trabalha em qualquer coisa né”, contou o trabalhador de 25 anos.


Já para o trabalhador de 21 anos, a filha era o principal motivo dele se manter naquelas condições. Ele sempre pensava nela e se emocionava cada vez que conseguia contato por ligação.

“Eu só aguentei esse tempo todo por conta da minha filha. Se não fosse por ela eu já tinha vindo embora. Ela tem 9 meses. Eu chorava quando via ela e ela sorria para mim, mesmo com um braço sentindo dor eu nem pensava nisso, pensava só nela, que tinha que me esforçar”, finalizou.

Agora, ambos voltaram para o interior o Maranhão, onde seguem a vida. Um deles já conseguiu um novo emprego em uma oficina mecânica, mas o outro ainda espera para definir a situação, por conta da lesão que tem no braço.


Situação do empregador
Em relação ao “cabeça” do esquema de contratação dos trabalhadores, o G1 procurou através de diversas formas o contato de algum representante de Márcio Areda ou pelo próprio, porém, não conseguiu contato com ele até a última atualização da matéria.


Já há um processo criminal instaurado por conta do crime cometido em 2019 e a documentação referente ao novo flagrante será encaminhado ao Ministério Público Federal para auxiliar no processo penal.


Em relação à esfera trabalhista, ele já tinha assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) perante o Ministério Público do Trabalho (MPT) antes. Será responsabilizado pelo descumprimento. Assinou novo TAC em relação ao pagamento dos trabalhadores dessa última ação.
 

Ele responderá nas esferas criminal, administrativa e trabalhista.

Após todas as constatações, foi feita a quitação de verbas, relativas ao contrato de trabalho, que eram devidas aos 84 empregados. Ao todo, o valor foi de R$ 635.708,12, pagos imediatamente pelo contratante.

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